Já é hora de pensar sobre o nacionalismo, por Elisabeth Zorgetz
Deixa o povo. Ele coloca a bandeira sobre o rosto para proteger e ostentar.
Mas se temos alcançado as querelas do momento como a leviandade do apartidarismo, o sufocamento do parte-darismo, a urgência de respeito às questões de gênero, a legitimidade da violência e muitas outras, é sinal que já passou da hora de por o pé no chão.
A História não se repete, ainda bem. E não ensina solitária, pois se assim o fosse o inverno russo não seria cova de tantas tropas. O que ensina, o que se desdobra, vigorosa, agarrada à História, é a Ideologia. Não se brinca com ela, minha gente. A Ideologia tem o péssimo hábito de invadir os espaços sem consultar os indivíduos. Então imaginem quando ela os consulta, e esses tolos, eufóricos, aquiescem num breve aceno. A amada Pátria não demora muito a voltar-se contra o povo, e quem pode culpá-la? Por sorte, a bandeira humana vem se sobressaindo. Isso poderá parecer esquizofrênico, mas quando as mídias foram enjeitadas pelo mau tom do levante brasileiro, passou a nos reunir num grande rebanho de fiéis da pátria, fiéis do continente. Fiéis a um hino criado numa colônia que não conheceu luta popular no processo de independência. Enquanto isso, o mundo passa por uma extensa primavera e não se surpreende tanto quanto nós com a revolução. Eles dizem: “Já era a hora, Brasil”. Nosso trabalho agora é combater o egoísmo ideológico e reconhecer que fazemos parte de uma erupção mundial, que começou tremendo a terra num canto do mundo onde se julgava proibido. Na África e Oriente Médio o olhar sobre o povo em libertação se sobressaiu ao povo egípcio ou ao povo sírio. No Brasil é mais difícil, pois velamos um espectro da liberdade. Ela nos ronda e não nos arrebata. Há uma cólera convulsionada contra quem elegemos. A quem elegemos. A quem delegamos poder para denegar ao nosso próprio. Pude assistir num canal virtual um momento curioso nessa onda de manifestações. Um breve discurso que me revelou uma eternidade de questionamentos. Como a história posta à prova na prática, e de propósito. Um jovem abriu uma fala com um fragmento de uma declaração de Fidel Castro de 59, sem atribuir ao cubano a autoria. Quem o ouvia, um grupo aparentemente misto e absolutamente povoado, com bandeiras cristãs, bandeiras vermelhas e bandeiras direitosas, vibrou de uma forma nunca vista num comitê de esquerda. Isso me provou que devemos caminhar por uma ideologia que nos acompanhe, ao invés de outra que nos suprima no futuro. Uma ideologia que escolhamos por dentro e não por fora, não pela memória. Ainda que signifique, lá no fundo, a mesmíssima coisa.
As vilanias da nação ainda têm muitas repercussões. Para isso, ilustro com o momento que Allende, presidente chileno, ao trabalhar por sua revolução de arriba, acaba por se deparar, também, com os esquivos trejeitos da pátria. Torna-se um paradoxo não apenas para a questão indígena, mas, principalmente, para a própria instalação do socialismo no Chile. A construção integral de um povo chileno estava consolidada no imaginário popular ou em marcha. Defender a revolução era também defender “el pueblo chileno”. Isso consistia numa cova vazia, afinal, o socialismo é uma intenção e um projeto mundializante, pleno. Identificá-lo com nacionalismos é perigoso, ainda mais porque a construção de nacionalismos está fortemente atrelada ao próprio erguimento do capitalismo. Por isso ainda me constrange nos ver pintados de verde e amarelo para revolucionar a consciência. E não há consciência que passe tranquila pelas vias da mais-valia. A nação brasileira é um fantasma que paira sobre as redes midiáticas, os centros urbanos, sobre a Constituição e a modelação do poder. Mas não representa a nossa massa rural e menos ainda os grupos indígenas.
Essa era uma questão labiríntica e que demandava uma longa duração para ser catalisada num Chile que urgia pela revolução, brutalmente interrompida.
Mas pode não ser para o Brasil, nesse momento.
É avaliar se alguma bandeira nos sustenta ou sustentamos alguma bandeira.
A autora Elisabeth Zorgetz é ilheense, membro do Coletivo Reúne Ilhéus, escritora e graduanda em História na UFRGS. É membro do Núcleo de História da Dependência Econômica na América Latina e trabalha a prospecção de estratégias focais de reforma agrária no sul da Bahia.